terça-feira, 16 de agosto de 2011

A PATOLOGIA DA NORMALIDADE


Cláudio Vital de L. Ferreira*

Definitivamente a normalidade dos dias de hoje está cada vez mais intolerável para mim. A mídia, principalmente a televisão, tem nivelado as mentes. Está se tornando proibido pensar. Faustão pensa por nós. Ana Maria Braga pensa por nós. O “jornal nacional” pensa por nós. A “Globo” pensa por nós. E tome novelas, filmes, frivolidades e passa tempo, num processo constante de manutenção da hipnose, pois é proibido pensar.

Tornou-se “normal” passar de 30 a 40 anos levantando todos os dias de madrugada para ir trabalhar, pegando ônibus superlotado na ida e na volta para percorrer o trajeto de casa ao trabalho, deixando os filhos aos cuidados de outras pessoas, às vezes parentes, outras empregadas ou então em creches e escolas, para no final de tantos anos se aposentar doente com um soldo miserável. Tornou-se normal e necessidade a mulher também entrar no mercado de trabalho para ajudar nas despesas da casa, deixando de lado a educação dos filhos. Isso todo dia, todo dia, todo dia. Os finais de semana são vividos como verdadeiras bênçãos de Deus, quando se dorme, se come muito, se vê Televisão. Sexta a tarde, apesar de todo o cansaço da semana, suscita alegria, pois amanhã é sábado e depois domingo. E quando há um feriado, que delícia! Domingo à tarde e Segunda de manhã são momentos de angústia e estresse, pois lá vem outra semana dura, levantando de madrugada e chegando tarde da noite depois de um dia de muito trabalho e desgaste. Tornou-se normal se comer sanduíches, os chamados “fast food” para não se perder tempo e se ganhar quilos a mais e saúde a menos. Se tornou normal trabalhar muito para se ganhar sempre menos do que necessitamos para sobreviver, onde o salário se evapora nos primeiros dias, enquanto o mês parece demorar uma eternidade para terminar.

Tornou-se normal escutar música sertaneja, rock, e funk. Os riquinhos então amam se martirizar com essas músicas tocadas em volume estridente produzido por aparelhos possantes dentro de caminhonetes reluzentes. Tornou-se normal buscar levar vantagem em tudo, dentro da popularmente conhecida “ lei de Gerson”. Somos auto complacentes quanto a transgredir leis, a cometer ilicitudes, pois afinal de contas “ todo mundo comete”. Tornou-se normal criticar os altos salários dos políticos e principalmente seus atos por serem considerados pouco éticos, mas se sonega imposto, se desrespeita o sinal de trânsito, se xinga pedestres atravessando a rua sobre a faixa branca. É um salve-se quem puder onde o mais “ esperto” sempre acha que vence.

Quase trinta anos de vida acadêmica me tornaram normal demais.Limitado que sou, muito mais do que a maioria das pessoas a minha volta, demorei algumas décadas para me rebelar. Definitivamente precisei enlouquecer. Napoleon Hill considera esse processo muito difícil pois todos caminham empurrados para uma mesma direção e para eles você está na direção errada. Uma universidade onde dei aulas durante seis anos me demitiu, pois alguns alunos perceberam que eu estava doido. Eu não dava as aulas mais da forma que esperavam de mim. Eu questionava as teorias acadêmicas. Eu me recusava a pensar pelos alunos. Eu puxava os alunos para que pensassem e construíssem a própria história a partir de suas raízes e problemas. Meus dois últimos anos em uma Universidade Federal, antes de aposentar, depois de duas décadas e meia como docente aí, foram tumultuados. Eu não ensinava mais aquilo que exigiam que eu ensinasse. Os alunos se preocupavam com notas e freqüência. Meus colegas docentes estavam preocupados se eu estava cumprindo o “programa” e se o que eu estava “dando aos alunos” estava dentro do “cronograma”. Ou seja, eu tinha que cumprir um “script”. Tudo certinho, estabelecido, definido. Desgostei alunos, colegas docentes, coordenador de curso e minha chefe. Era proibido pensar. A ordem era passar “conhecimentos” aos alunos, transmitir “conhecimento” e exigir em provas e trabalhos o aprendizado do meu pretenso conhecimento das tais teorias acadêmicas. Me dei conta que por muito tempo reproduzi de forma sofisticada o mesmo processo de hipnose usado por Faustão e “ratinho” na Televisão.

Não consigo mais ser normal. Nos últimos anos tenho piorado bastante. Universidade para mim tem o mesmo sentido dado pelo grande José Pacheco à Escola da Ponte. Quase sempre é enfadonho ver televisão. As músicas que a maioria das pessoas gostam me martirizam. Levanto cedo para fazer o que gosto e não para ir bater ponto em um emprego. Amo trabalhar finais de semana onde todos descansam. Adoro brincar com minha filhinha de sete anos e me emociono toda vez que seu olhar cruza com o meu.

Nasci na roça no sul de Santa Catarina e aí vivi toda minha infância. Era feliz com meus pais e alguns irmãos. Adorava procurar araçá na mata para comer. Subia em coqueiros para colher seus coquinhos quando amarelos. Ah que delícia aquelas quaresmas amarelinhas à beira do rio. Como era gostoso tomar banho nu no rio de águas cristalinas. Era incrível a caça as rãs para comê-las, depois de fritas por minha mãe. Peguei uma vez um jundiá enorme bem na beira do rio, de causar inveja aos meus dois irmãos que conviviam mais de perto comigo e gostavam de pescar em águas mais profundas. Que sensação de liberdade caminhar de pés no chão pela mata às margens do rio e poder fazer xixi ao pé de uma árvore. Como me sentia acolhido quando a noite, a luz de um lampião nos sentávamos para jantar e depois conversar em família e por último, antes de ir dormir, ouvir uma estorinha ora contada por meu pai, ora por minha mãe. Eu era muito feliz, mas ouvia sempre em um velho rádio à bateria que meu pai tinha, que a vida era bem melhor em uma cidade grande. Comecei então a sonhar que seria melhor morar em uma grande cidade. Porto Alegre seria legal, mas se fosse Rio de Janeiro seria um sonho. Se pudesse um dia morar em uma cidade no Exterior então seria inacreditável. Morar em Londres, na Inglaterra, passou a ser um dos meus maiores objetivos na época. Nunca morei em Porto Alegre, mas morei no Rio de Janeiro onde fiz minha graduação. Morei também em S Paulo. Foi aí que percebi que cidade grande tem menos encantos do que eu pensava. Morei em Barcelona na Espanha e realizei meu sonho de morar em Londres. Aos 60 anos de idade a vida me ofereceu muitas oportunidades as quais aproveitei para conhecer lugares diferentes e aprender com a experiência.

Hoje me dei conta que a ordem estabelecida pela natureza me harmoniza enquanto que a produzida pelo homem me estressa. Não tenho mais ilusões sobre as “vantagens” das cidades grandes. Percebi que a vida é simples como a natureza é simples. Somos como a semente, nascemos, vivemos e morremos! Simples! Mas, a sabedoria nos ensina que a felicidade não se encontra no final. Como diz o grande Guimarães Rosa : “ a coisa não está nem na partida nem na chegada; está é na travessia”.Não existe prazer maior do que sentar próximo a uma mata de buritis e ouvir a orquestra produzida pelo vento em suas folhas, acompanhada do som de inúmeros pássaros e insetos. Quer beleza maior do que o grande espetáculo produzido pela natureza? Para qualquer lugar que olho, a natureza me fascina e me comove. Para mim, é principalmente através desse grande espetáculo que Deus se manifesta. A sabedoria e a grandeza de Deus está contida em cada detalhe da natureza, quer na disciplina da formiga, no destemor dos gafanhotos, na infinitude do céu ou no horizonte da extensão do mar. Ah o mar! Sinto a espuma e a areia acariciando meus pés! Chuá...chuá! La vem a onda!
 
* Psicólogo,Dr. Em saúde mental, Psicanalista e escritor- Prof. Associado aposentado - Instit. de Psicologia-UFU-Email: cvital@mailcity.com Tel.034-9158-9012

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